sexta-feira, novembro 19, 2010

Simplesmente eu





            No turbilhão de todas as palavras que não tinham como ser ditas, no maremoto de tantos sentimentos, aquele abraço era a gota de orvalho que desce suave sobre as folhas das árvores após um tórrido dia de verão.

            Era o frescor da brisa suave, aquela que vem do mar no final da tarde, remexendo com suavidade os fios curtos dos cabelos tingidos com a esperança ilusória de retardar a vida em seu ritmo próprio.

            O aconchego reverberou nas palavras doces, no tom suave, quase paternal: “Não tem do que pedir desculpas, moça!...” O som projetou, na retina, a imagem refletida no espelho e as lágrimas acudiram rápidas, embora reticentes.

            Sentiu-se envolvida ainda mais fortemente. Naquele instante nada lhe conseguiria atingir, não ali, naquela fortaleza inexpugnável e por alguns instantes sentir-se acolhida, entendida, amada, protegida, era muito mais que tudo.

            Não era necessário usar máscaras, ser forte, incorruptível, sempre certa, absolutamente impecável. Ali, naquele pequeno espaço, podia correr descalça, tomar sorvete e deixar escorrer pelo canto da boca, chorar de medo, gargalhar de prazer, sentar-se de pernas para cima, em cima da mesa, debaixo da cama. Plantar bananeiras, sentir preguiça, ser criança, mulher ou anciã... Podia ser simplesmente o que era e isso era muito para alguém que sempre teve que ser um personagem, um super-herói, uma ficção.

            Um sorriso aflorou no coração e sua alma entoou um cântico de gratidão: Nunca recebera um presente mais valioso na vida que esta oportunidade de ser simplesmente o que era!

quinta-feira, setembro 02, 2010

Encontro Casual

Encontraram-se, esbarraram-se pelas calçadas da vida, assim como não quer nada, sem razão ou causa.
Um terno azul e uma camisa branca. Um vestido preto, longo, de pequenas flores coloridas, uma blusa amarela. Esbarraram-se e desse encontro surgiu o desejo, a esperança. Brotou de um olhar, de um pensar involuntário, de um perfume no ar, a remota e intangível esperança de ser feliz.
Esperança de SER. O que seria ser para alguém que nunca foi? Deram-se os braços, aos abraços tatearam a descoberta sem saber ao certo, sem luz do sol, sem espaços abertos, mas com o toque decerto do cetim... Perfume de jasmim e lavanda ao sol da manhã, jardins de bergamotas e tantas corredeiras, trepadeiras, rosas mil.
O tempo passou por eles sem serem notados, sem jamais estarem rotos ou amarrotados, brincando no jardim do Pai eram filhos felizes em seu encontro inusitado.
Na Constancia desse brincar eterno nasceram a esperança e o desejo, quase gêmeos, e como Esaú e Jacó, o desejo veio segurando o pé da esperança que mansa cedeu seu lugar e força. O desejo alimentou-se de cada dia, de cada olhar e hora. Cresceu e floresceu forte e vital quase matou a esperança que aos trancos e barrancos insistiu em crescer.
Magra e mirrada, apagada como um não existir, não era vista e nem sentida, mas estava ali. Esperança de sempre quando se sabia nunca, esperança de um dia para o jamais, esperança de sempre para o só agora.
Foi quando o vendaval suspendeu o abraço e separou os braços que  a esperança mostrou sua força. Resistiu bravamente enquanto o desejo se consumia. Foi forte e disse resoluta: quem sabe um dia e ainda está lá, calada, esperando enquanto o desejo se desespera, descabela e quer que o tempo seja ontem...
Esperar é tudo que a esperança sabe fazer e esperar é uma forma de amar!

quarta-feira, agosto 18, 2010

Eu e o Coelho Branco

O coelho branco passa correndo. Consulta seu relógio de algibeira e repete  compulsivo: estou atrasado, estou atrasado... Perde-se  no final da rua, ao norte, enquanto se ouve o eco de sua voz: estou atrasado, estou atrasado.
                Levanto-me disposta a segui-lo, tal como Alice, sabendo no entanto que o coelho branco é a realidade de todos nós, é a minha realidade, sempre atrasada, chegando sempre depois da hora, quando a festa já terminou, quando não há mais lugares disponíveis a não ser na janela.
                Enxugo as grossas gotas de chuva que insistem em escorrer pelo meu rosto. Chove. É inverno na praça do meio do mundo, não obstante,  do oeste, vem um suave fragor de rosas. Aspiro-o. O bouquet está impregnado em mim, gravado no fundo das minhas pupilas, revejo o jardim onde rosas , bergamotas,   limões e mandarina misturam-se a limas da pérsia e enchem o ar com fragor das manhãs.
                Não posso permanecer ali, parada, na chuva. A vida urge, alguns dizem que ruge.
                Sigo o rastro do coelho branco, ele é a realidade. O jardim é só fantasia, é só o mundo de Alice e a fantasia há muito me foi negada!
                Estou atrasada, estou atrasada, estou  cansada!...

sexta-feira, julho 30, 2010

Entre Estações



E seus olhos se encheram da beleza contida na poesia do olhar, na ternura do perfume que atravessava o tempo e batia à porta dos sentidos para dizer olá! Sua pele estendeu-se numa fusão de aromas e texturas e a vida começou a resfolegar num crescente que ao modo de volutas elevava-se ao infinito.
Escorreram pelo azul doce de um céu sonhado perdendo-se no quase nada de uma trilha marcada por riscas de giz e no espaço que se ia abrindo a vida aflorava em plena primavera.
Os campos floriram à meia noite e o inverno se afastou célere para deixar espaço às rosas que apareciam e nos olhos de estrelas viu-se o sol que renascia!

E se as flores resolvessem desabrochar em pleno inverno, como ficaria a primavera?

E o fogo chegou sufocando tudo, destruindo a paisagem que insistia em nascer apesar do inverno, tentando matar a vida, como se vida após surgir pudesse ser sufocada. Na sua fúria, murchou as rosas, fez crescer os espinhos e encrestou a face da terra fazendo sua face corar de águas pingadas. Elevou suas mãos em direção ao firmamento na tentativa inútil de destruir as volutas de prazer que subiam como oferendas de incenso. A terra fechou-se em si mesma e abraçou os brotos de vida para os proteger do calor excessivo, o inverno curvou-se sobre ela refrescando seu coração com ternura, escondendo-se nas dobras da noite distante e o céu sorriu vendo seus filhos brincarem de até mais...

E se a chuva lavasse as cinzas e fizesse os brotos nascerem mais fortes?

terça-feira, julho 20, 2010

Fado das Dúvidas


Madredeus

Composição: Pedro Ayres Magalhães
Se já não lembras como foi
Se já esqueceste o meu amor
O amor que dei e que tirei
Não queria lamentar depois
Mas uma coisa é certa eu sei
Não tive nunca amor maior
E ainda vivo o que te dei
Ainda sei quanto te amei
Ainda desejo o teu amor
Não tenho esperança de te ver
Não sei amor onde andarás
Pergunto o todo o que te vê
E nunca sei como é que estás
Agora diz-me o que farei
Com a lembrança deste amor
Diz-me tu, que eu nunca sei
Se voltarei ou não para ti
Se ainda quero o que sonhei

http://www.youtube.com/watch?v=8kjy2GbyfcU