quarta-feira, novembro 22, 2017

Destroços

É tarde, mas não consigo conciliar o sono. Levanto-me, tomo um banho morno e preparo um leite com mel. Sento-me no chão e espalho os cacos do que sobrou de mim, à minha volta.
Estou cansada demais. Da vida, de mim mesmo, de todas as pessoas.
A faxina é necessária porque a vida precisa seguir em frente. Procuro ao menos um pequeno pedaço inteiro a partir do qual eu possa começar a reconstruir, mas não há...Tudo foi estilhaçado como um vidro temperado que ruiu ao chocar-se com uma pedra.
Uma grande onda sonora. Um tsunami de silencio e eu me parti inteira. Remendada que já era, colada cuidadosamente pela confiança que depositei em você, nada sobrou.
Arremessada brutalmente sobre os cacos de mim mesma, os estilhaços me romperam por dentro de uma forma horrenda. O sangue jorrou sem parar e a hemorragia me sufocou completamente. Nada sobrou além do sangue, nem mesmo a dor.
O vazio é imenso. Não tem começo e nem fim. Não tem luz, nem cor.  É um vórtice do qual não consigo sair. Já me revoltei, já busquei soluções, já chorei e já orei e já esperei. Agora não faço e não quero mais nada.

Não quero nem você e nem a vida. Não quero ninguém: nem filhos, nem netos, nem amigos ou relacionamentos. Não quero nada. Ou antes, quero: quero dormir um sonho profundo, sem sonhos e sem lembranças. Eterno. Duradouro.
Quero esquecer que a pessoa em quem mais confiei na vida me sacaneou, usou, enganou. Quero esquecer o tamanho do meu engano em acreditar, confiar e honrar alguém que ao fim mostrou que não era nada do que eu pensava...
Não é o fim que dói, é a desilusão com a pessoa, com o caráter, com a conduta.
É pensar que a integridade, a lealdade, a sinceridade tão propalada, o carinho e a consideração tão reafirmados não existiam. Eram só uma hipocrisia como toda e qualquer outra existente.
Nada e ninguém é confiável. Nem mesmo você. Nem mesmo eu porque me enganei com você, sobre você.
Lembro-me do adágio que diz: Para saber se algo vale a pena, pergunte a quem já alcançou. Eu vi todo o tempo quem alcançou o lugar  próximo do qual eu queria chegar, mas vi com os óculos da ilusão do possível diferente.
Olhei com os olhos demasiadamente admirados. Cheios de um respeito e uma consideração que não existiam. Não vi o que estava ali, vi o que quis ver e agora que nada resta, a visão do vácuo é assombrosa.
Vinte e cinco anos destruídos em cinco meses. Onze anos jogados ao lixo. Pisoteados. Moídos em cacos que agora se espalham ao meu redor...
Sorrio enquanto o sangue inunda tudo.
Não, claro que não. Claro que você não pediu que lhe amasse. Claro que não prometeu que duraria para sempre. E nem esperei isso.

Prometeu, sim, respeito, consideração, lealdade e não cumpriu.
Prometeu amizade, consideração. Exigiu e conquistou respeito e ao final mostrou que não os merecia. Foi moleque. Irresponsável, sem a menor consideração comigo.
Descartou-me como se descarta uma roupa usada que já não serve.
Escondeu-se sob a primeira tramóia que apareceu para se afastar jogando em mim uma culpa que sabe que não tenho.
Não tenho mais utilidade. Não sirvo mais. Porque já não precisa do serviço que eu lhe prestava ou porque outra pessoa o presta agora, dispensou-me como se joga um papel de bala já chupada: pela janela, sem olhar para trás. Sem uma palavra, sem uma explicação.
Se eu me quebrei, azar o meu!
Se eu pedi, perguntei, se nos prometemos não fazer isso, se abri mão de tantas coisas, problema meu que acreditei no combinado, que me dediquei, que tentei. Porque considerar? Vamos a próxima conquista. Há novos atos para serem feitos, novas técnicas a serem experimentadas, novos caminhos a desbravar.
E eu?
Você? Quem é você? Apenas um nada inservível jogado...
Sentada entre meus cacos, queria dormir um sono eterno. Sem sonhos e sem fim. Queria esquecer tudo. Todos. Se não tenho importância para ninguém, se o próprio Deus parece ter se esquecido de mim, para quê ainda caminhar entre os homens? 

O sol me incomoda. A chuva. Os sons. Minha mente sobriamente vazia. Meu coração parado, meu corpo inerte. Nada mais existe ou tem sentido. Não quero nada, só queria muito me quebrar por fora como me quebrei por dentro e entre flores olhar para todos, de dentro do sono, e saber porque...