quarta-feira, julho 08, 2009

Portais


Penso que escrever cartas é abrir janelas para que nos contemplem a vida borbulhante em pensamentos. Receber cartas é debruçar-se sobre o parapeito da janela alheia a pesquisar os movimentos dessa casa interna chamada alma.
Engana-nos o senso comum ao chamar de envelope o invólucro que envolve as cartas/janelas. São na verdade as folhas que abrimos, par-em-par, após retirarmos as travas que alguns cortam com requintada elegância.
Janelas mágicas que perduram através dos tempos se as soubermos conservar. São portais encantados para a terra do nunca onde permanecemos sempre jovens , felizes, tristes ou apaixonados.
Guardo meus portais elegantemente organizados, amarrados com uma fita-cetim-rosa-sol, em uma requintada caixa chamada memória. Lá existem portais que me conduzem à infância e seus contos de fadas, à adolescência com o primeiro beijo, eterno amor, primeiro emprego, primeiro filho...
Sento-me, hoje, ao pôr-do-sol, caixa ao colo, puxo uma carta e vejo você: tão sério, tão elegante, tão fino e eu tão menina: com medo, vontade de correr.
Uma outra carta é a mais eloqüente de todas, embora para muitas pessoas nada signifique. Um folheto, com uma rosa vermelha como ilustração. Uma mensagem dizendo confie em Deus, ponha nele todos os seus problemas!
Para a maioria das pessoas um simples folheto, para mim a mais eloqüente das cartas. Um conteúdo que jamais esqueci: aceitação, acolhimento, sabedoria. Amor no melhor estilo das práticas Paulinas.
Eu poderia ouvir:
“Quando tá escuro E ninguém te ouve Quando chega a noite E você pode chorar... á uma luz no túnelDos desesperados Há um cais de porto Prá quem precisa chegar...”
Na próxima carta, o arcano XX mostra o julgamento: Duas mulheres disputam um homem entre si. Não podendo jogar dados sobre suas vestes, usam uma menina como cabo de guerra. Porque a menina? Pequena menina assustada, sem entender nada...
Entendo as mulheres. Entendo uma das mulheres. Seu medo escondido por trás de todas as suas palavras. A que não entendo, receio. Sou avessa, tenho medo. Já não menina, nem assustada, mudo de calçada ao vê-la passar e suavemente, como quem não quer nada, olho para os lados, sorrio ingênua e sigo em frente.
“Non, rien de rien, non, je ne regrette rien.Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal, tout ça m'est bien égal. Non, rien de rien, non, je ne regrette rien, C'est payé, balayé, oublié, je me fous du passé.”
Ponho meus braços em torno do seu pescoço, beijo-lhe a boca quente, doce e, certamente,
“Non, rien de rien,non, je ne regrette rien. Car ma vie, car mes joies,Pour aujourd'hui ça commence avec toi”




- Oi, não sei se você ainda se lembra de mim, mas é
Uma noite longaPr'uma vida curta Mas já não me importa Basta poder te ajudar... E são tantas marcasQue já fazem parte Do que eu sou agora Mas ainda sei me virar...



- Claro, vamos conversar?
Eu tô na Lanterna Dos Afogados Eu tô te esperando Vê se não vai demorar... Uma noite longa Pr'uma vida curta Mas já não me importa Basta poder te ajudar...”
- “Entre por essa porta agora
E diga que me adora Você tem meia hora Prá mudar a minha vida Vem, vambora Que o que você demora É o que o tempo leva...



Para escrever as novas cartas que ficarão como estas, amarradas em fitas-cetim-rosa-sol, guardadas nas caixas de musica da lembrança, portais mágicos de um outro tempo, tempo de janelas e beirais.
08 jul009