Elegia II
“o mais terrível dos males nada
é para nós, pois, enquanto existimos, a morte não é, e, quando ela está lá, já
não existimos nós. A morte não teria, por conseguinte, nenhuma relação nem com
os vivos nem com os mortos, uma vez que ela nada é para os primeiros e os
últimos já não existem”Epicuro
“(...)O que se pergunta é se, ao ouvir-se o
ritmo biológico do próprio corpo, e ao experienciar-se — ainda que
indiretamente — a condição de mortal antecipada na morte do outro, não emergirá
um intuitiva ameaça que põe radicalmente em causa a possibilidade da
indiferença? Ora, apreender o sentido do inaceitável definhamento é um dos
requisitos necessários para se tentar apreender o tempo; ou melhor, o homem
como tensão entre um futuro que ainda não é e um passado que já não existe.”
(SCHELLER/QUENTAL, Antero)
Munida da reflexão acima, após 11 meses, cerca
de 351 dias, eis-me de volta de uma incrivel e exauriente perigrinação pelo
maior deserto jamais atravessado por mim.
No mesmo ponto de partida, deixo o féretro do
homem que amo – orna-o os meus mais
belos sonhos e as mais perfumadas esperaças – e saio livre de qualquer bagagem
emocional. Sem ontem e nem amanhã, livre de todas as lembranças e expectativas,
resurjo das minhas proprias cinzas.
Os ouvidos que festejavam o som de sua voz,
acostumaram-se ao silencio da solidão. O deserto é silencioso como a morte. No
infinito do vazio entendemos o nada da existencia. Não somos, ninguém é.
Estamos e estar é uma condição passageira.
A pele que vicejava ao suave toque de suas
mãos, encrestou-se pelo calor do abandono e os olhos que antes brilhavam à luz
do seu sorriso lavaram-se sucessivamente em lágrimas sorvidas pelo infernal
calor da indiferença. Como uma lâmina bem temperada, primeiro turvaram-se, para
então, dia-a-dia clarearem até despontar brilhantes ao primeiro sol de hoje.
Engana-se quem supõe – e eu mesma o fiz – que
foi a carpideira quem deu cabo a tudo. Ela apenas levou teu corpo inerte já de
muito morto quando se entregou ao seu choro ritimado, anúncio de uma morte já
concretizada.
No inicio deste ciclo, jogara-me aos pés de um
outro morto – este vivo, dizem por aí as noticias que circulam talvez para nos
dar uma esperança de amanhã – e reclamei uma providencia definitiva a qual me
chegou a conta-gotas enquanto meus pés ensangues e desnudos percorreram as
areias tórridas do deserto.
A fome e a sede me desorientaram causando
ilusões e delírios. Vi-te chegar ressurreto e sorridente e cri que tudo não
passara de um pesadelo macabro, mas ao cair da noite, o frio refrescou-me a
mente e abismada entendi que nada havia alí.
Por sucessivas vezes os delirios me atacaram
com uma fera faminta. A febre voraz, atiçada pela esperança maquiavélica que
dizia que tudo era ilusão e a verdade era a realidade que já não existia,
mingou minha resistencia dia-a-dia. Na exaustão adormeci um dia, melhor,
desmaiei inconsciente.
Deste dia lembro-me de duas coisas: antes de
fechar os olhos clamei ao universo por clemencia. Já não sabia orar, não havia
mais água para chorar e nem forças para me ajoelhar. Serenamente aceitei
morrer. Fechei os olhos calmamente pela primeira vez naquele deserto sombrio.
A mão misericordiosa de Morfeu acariciou meus
cabelos, fechou-me os olhos e levou minha alma a banhar-se em seus rios de
águas profundas. Do meio do nada, Psiquê trouxe sua imagem à minha presença –
esta a segunda lembrança – e conversamos docemente. Segue-se.
(Abraçados)
(Eu) – Saudades. Quanto tempo não lhe vejo!
-
Sim. Muito tempo. Também senti saudades, mas não posso voltar. Não tenho
coragem.
- Coragem? Como assim? O que lhe impede de
voltar se estou aqui, a tua espera?
- Foste leal e dedicada. Sei das tuas
virtudes. Reconheço teu carinho. Ainda sofro a influencia da tua pele e do
teu corpo quente. Eu, ao contrário, profanei tua confiança, conspurquei o
altar do corpo que me ofereceste confiante, violei a sacralidade da tua casa
introduzindo nela o desrespeito. Envergonho-me muito e na minha vergonha – de
mim mesmo, esclareça-se – magoei-te tratando-te como vilania como uma forma de
me autopunir provocando tua ira.
- Não me irei todavia. Amo-te demais para
tanto.
- Pois tanto pior para mim Teu perdão, tua
compreensão desarrazoada, teu sentir desapegado e solicito causaram-me ainda
mais espécie.
- Mas...Creio que tudo seja já passado,
pois não? Aqui estamos e teus braços me abraçam como dantes!
- Não. Decerto que não. Voltei – e esta é uma tentativa de remissão – para te
alertar que ele se parece comigo, mas não sou eu! Tem o meu cheiro, a minha
altura e responde pelo meu nome, mas não sou eu. Que te parece o gosto que
deixa na sua boca? Doce como o meu?
- Impossível! Doce algum se assemelha aos teus lábios quando me beijam... Ele tem
uma boca amarga, fria. A tua sugava-me a alma!
-
E ao seu toque, como sentes a tua pele? Como se agita a sua essência feminina?
Como dantes, desces por escorregas de nuvens macias?
-
Agora que me perguntas, dou-me conta de que suas mãos não brincam com meu corpo
como as tuas. Mal tocam-me e se o fazem o frenesi que causam é mera excitação
nervosa. Nunca alcançou-me a alma ou lançou-me na presença do grande Deus...
Não há êxtase e nem paz, ao final.
-
Pois bem,vês que não sou eu todavia. É um farsante a passar-se por mim, um
fantasma a exaurir ainda mais a tua pouca energia. Não lho permita. Olha que
bela construção fizemos de ti. Não deixes que avilte a obra que construímos.
Chega o mal que eu mesmo, com minha covardia, te fiz!
-
Ver-te-ei novamente?
-
Não. Nunca mais, mas não chores. Fomos felizes. Temias a perda do meu corpo
físico, hoje vivo em ti e quando o meu corpo se for, não lhe serei tirado, pois
já não existo senão nas tuas lembranças. Guarda-as. Recolhe os sinais externos
de que um dia flori teus sonhos. São lembranças sagradas de tua alma.
Permanecerão lá para sempre e tão frescas quanto menos forem
expostas...
Virei-me
para beijar, ainda uma vez, teus lábios amados. Minha rosa colombiana cuja
aveludada doçura tanto me encantava. Deparei-me com uma poça de água salgada
ali onde antes era nosso ninho.
De
volta a realidade e ao sol escaldante do deserto, tomei das minhas lágrimas
como motor e levantei viagem. De alguma forma necessitava atravessar todo
aquele areal e chegar á cidade mais próxima ou, ensandecida, morreria.
A
privação pode ser uma arma de melhoria. A uva que seca deve pensar que morreu,
mas na verdade transformou-se em outra fruta: mais doce e nutritiva, a
uva-passa resiste muito mais e pode ser consumida de muitas outras maneiras que
a uva fresca jamais imaginaria.
Assim
também eu, hoje – ao chegar ao ponto de onde parti ha um ano – ao entender que
já te entregaras ao choro carpido muito antes de partires para a viagem da qual
nunca voltastes, deixo todas as coisas para trás.
Como
me sugeristes, retirei todos os teus sinais visíveis. Existes agora apenas em
mim. Enterrei-o com tuas lembranças.
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