É tarde, mas não consigo conciliar o sono. Levanto-me,
tomo um banho morno e preparo um leite com mel. Sento-me no chão e espalho os
cacos do que sobrou de mim, à minha volta.
Estou cansada demais. Da vida, de mim mesmo, de todas as
pessoas.
A faxina é necessária porque a vida precisa seguir em
frente. Procuro ao menos um pequeno pedaço inteiro a partir do qual eu possa
começar a reconstruir, mas não há...Tudo foi estilhaçado como um vidro
temperado que ruiu ao chocar-se com uma pedra.
Uma grande onda sonora. Um tsunami de silencio e eu me
parti inteira. Remendada que já era, colada cuidadosamente pela confiança que
depositei em você, nada sobrou.
Arremessada brutalmente sobre os cacos de mim mesma, os
estilhaços me romperam por dentro de uma forma horrenda. O sangue jorrou sem
parar e a hemorragia me sufocou completamente. Nada sobrou além do sangue, nem
mesmo a dor.
O vazio é imenso. Não tem começo e nem fim. Não tem luz,
nem cor. É um vórtice do qual não
consigo sair. Já me revoltei, já busquei soluções, já chorei e já orei e já
esperei. Agora não faço e não quero mais nada.
Não quero nem você e nem a vida. Não quero ninguém: nem
filhos, nem netos, nem amigos ou relacionamentos. Não quero nada. Ou antes,
quero: quero dormir um sonho profundo, sem sonhos e sem lembranças. Eterno.
Duradouro.
Quero esquecer que a pessoa em quem mais confiei na vida
me sacaneou, usou, enganou. Quero esquecer o tamanho do meu engano em
acreditar, confiar e honrar alguém que ao fim mostrou que não era nada do que
eu pensava...
Não é o fim que dói, é a desilusão com a pessoa, com o caráter,
com a conduta.
É pensar que a integridade, a lealdade, a sinceridade tão
propalada, o carinho e a consideração tão reafirmados não existiam. Eram só uma
hipocrisia como toda e qualquer outra existente.
Lembro-me do adágio que diz: Para saber se algo vale a
pena, pergunte a quem já alcançou. Eu vi todo o tempo quem alcançou o
lugar próximo do qual eu queria chegar,
mas vi com os óculos da ilusão do possível diferente.
Olhei com os olhos demasiadamente admirados. Cheios de um
respeito e uma consideração que não existiam. Não vi o que estava ali, vi o que
quis ver e agora que nada resta, a visão do vácuo é assombrosa.
Vinte e cinco anos destruídos em cinco meses. Onze anos
jogados ao lixo. Pisoteados. Moídos em cacos que agora se espalham ao meu
redor...
Sorrio enquanto o sangue inunda tudo.
Não, claro que não. Claro que você não pediu que lhe
amasse. Claro que não prometeu que duraria para sempre. E nem esperei isso.
Prometeu, sim, respeito, consideração, lealdade e não
cumpriu.
Prometeu amizade, consideração. Exigiu e conquistou
respeito e ao final mostrou que não os merecia. Foi moleque. Irresponsável, sem
a menor consideração comigo.
Descartou-me como se descarta uma roupa usada que já não
serve.
Escondeu-se sob a primeira tramóia que apareceu para se
afastar jogando em mim uma culpa que sabe que não tenho.
Não tenho mais utilidade. Não sirvo mais. Porque já não
precisa do serviço que eu lhe prestava ou porque outra pessoa o presta agora,
dispensou-me como se joga um papel de bala já chupada: pela janela, sem olhar
para trás. Sem uma palavra, sem uma explicação.
Se eu pedi, perguntei, se nos prometemos não fazer isso,
se abri mão de tantas coisas, problema meu que acreditei no combinado, que me
dediquei, que tentei. Porque considerar? Vamos a próxima conquista. Há novos
atos para serem feitos, novas técnicas a serem experimentadas, novos caminhos a
desbravar.
E eu?
Você? Quem é você? Apenas um nada inservível jogado...
Sentada entre meus cacos, queria dormir um sono eterno.
Sem sonhos e sem fim. Queria esquecer tudo. Todos. Se não tenho importância para
ninguém, se o próprio Deus parece ter se esquecido de mim, para quê ainda
caminhar entre os homens?
O sol me incomoda. A chuva. Os sons. Minha mente sobriamente vazia. Meu coração parado, meu corpo inerte. Nada mais existe ou tem sentido. Não quero nada, só queria muito me quebrar por fora como me quebrei por dentro e entre flores olhar para todos, de dentro do sono, e saber porque...