segunda-feira, dezembro 31, 2007

Icaro

Recordo-me perfeitamente do dia em que conheci Ícaro. Minha vida estava de ponta cabeça e nada fazia sentido com nada. Saí a esmo, como todas as noites, espiando aqui e ali, procurando uma alma inteligente disposta a dar-me alguns minutos de atenção numa conversa medianamente saudável. Muito embora minhas emoções estivesse desordenadas, meu cérebro permanecia íntegro e como tal minha curiosidade. Aventurei-me diversas vezes por ambientes novos, onde nunca havia estado e onde nunca mais voltei depois daquele dia. Espiei por varias janelas sem saber ao certo o que procurava, hoje sei que procurava Ícaro e sua inteligência brilhante, suas respostas rápidas, sua atenção solícita. Numa destas janelas em que me plantei a olhar o tempo, foi que o encontrei. Começamos a conversar despretensiosamente, quase a saber o que um e outro fazia ali.Não nos parecia que fosse o nosso ambiente e assim a conversa foi evoluindo e nos envolvendo e nos fomos tornando íntimos, amigos, trocando informações cada vez mais pessoais até que – perdida entre os ponteiros do relógio – tive que jogar meu endereço no ar e, como uma bailarina encantada, dar uma pirueta e sair de cena. Antes, agarrei , sem muita certeza, sua direção. Dia seguinte eu aguardavam-me compromissos de alta responsabilidade, mas meu último pensamento foi dele, assim como o primeiro do dia e o próximo logo após : queria falar-lhe, contar-lhe como foi, dividir, compartilhar! E assim os dias foram transcorrendo com nosso envolvimento maior a cada dia. Encontrávamos-nos furtivamente, entre um e outro café, fazíamos janelas nas escalas de trabalho e embora não houvesse uma presença física, real, foi a pessoa com quem mais compartilhei em toda a minha vida e que esteve, efetivamente, mais presente no meu cotidiano. Fiz planos que, hoje sei, não conseguiria jamais concretizar. Foram muitos os sonhos, mas eram apenas sonhos e como tal dissolveram-se no ar, embora algumas idéias ainda permaneçam. Em meados de novembro, sem mais nem menos, Ícaro enviou-me uma carta lacônica. Era imperioso que nos afastássemos para sempre. Havia pensado, discutido nossa situação com alguns amigos, e chegara a conclusão que nosso envolvimento era prejudicial a sua vida. Fiquei atônita. Busquei razões e não as encontrei. As interrogações cresceram, floresceram e morreram sem encontrar substrato. Não havia resposta para as minhas perguntas. Nada mais deveria existir, nem mesmo uma amizade, uma camaradagem. Perdi o rumo e fui salva, mais uma vez, pelo mesmo método. Anos antes, havia reencontrado um velho amigo, Jerrez, com quem restabeleci uma fraterna relação que aos poucos tomou um outro contorno. Eu e ele sofríamos de um mesmo mal, o qual apelidei de solidão dos fortes, e da solidariedade mútua surgiu uma relação também física onde buscávamos aplacar a sensação de sermos seres únicos, sem um par, nesse mundo dual. Por breves instantes nos sentíamos completos, acolhidos e entendidos e isso nos recarregava para a faina cotidiana. Ainda hoje participamos desse mesmo programa embora com contorno, agora, diversos. Seu abraço forte é o melhor esconderijo que alguém pode ter quando o mundo desaba e tudo que se enxerga a volta é o próprio caos das perguntas que não possuem resposta possível. Voltei à terapia. Se minha era, anteriormente, um grande quebra-cabeça desmontado, agora se rasgara a caixa e as peças voavam aleatoriamente pelo espaço infinito do Universo. Saí do emprego que já me sufocava, viajei em férias, ocupei-me de outras coisas, mas não o esquecia. Todavia, respeitei seu espaço e decisão e aos poucos fui acostumando - me a não ter com quem compartilhar, dividir, brincar... E meu porto seguro tornou-se, a cada dia, mais seguro. Na terapia evoluía lentamente. Não é fácil recolher mais de um milhão de peças soltas pela imensidão do nada...Um dia, discutindo minha relação com Ícaro e a dor que sua ausência me causara, utilizei-me de uma expressão que foi fundamental para o deslinde da situação: “Os braços fortes de Jerrez salvaram-me mais uma vez!, por quê?” Questionada fui por não haver utilizado outro verbo: porque não me saciou, aconchegou-me...porque me salvou?Estaria eu em perigo? Estaria fazendo algo que não me sentia preparada? Seria Ícaro uma fuga? Chegamos a conclusão que admirava em Ícaro, tal qual Narciso, o reflexo de mim mesma ... As peças foram se juntando pouco-a-pouco e tudo foi se acalmando. Colei a caixa deixando dentro algumas peças ainda sem montar – permanecem assim e creio que ainda vão ficar por lá algum tempo! Certo dia o telefone tocou e, ao atender, surpreendi-me que fosse Ícaro. Havia repensado e chegara a conclusão de que sua decisão não fora acertada. Conversamos, mas, agora , entendia todos os mecanismos da nossa relação. Delimitara o tema longamente e permaneci assim. Dizem os filósofos gregos que o amor se divide em três categorias, com gradações diversas: ágape – o amor transcendente, Eros – o amor físico e Phileos – o amor aos semelhantes. Ícaro é Phileos, é o reconhecimento das semelhanças entre duas almas, a perfeita identidade espiritual entre seres sem que haja a necessidade de uma aproximação física. Entendo suas batalhas, embora não compreenda algumas de suas reações, sei que me entende também, podemos nos apoiar e nos amar desta forma tão afastada de todo e qualquer outro impedimento, desta forma maravilhosa que o tempo não tem o condão de estragar e que os anos só fazem apurar a qualidade... Somo almas gêmeas no melhor sentido da expressão!