quarta-feira, maio 03, 2017

Das Minhas Inabilidades

A situação foi, como sempre, pitoresca!
Estou no balcão despachando um processo e vem lá de dentro um serventuário sorridente. Passa por mim e interrompe minha prosa de trabalho com um efusivo boa tarde seguido de um largo sorriso. Surpresa, e, como sempre, sem graça, abro um esboço de sorriso e retribuo a saudação.
Certamente meu desconcerto foi evidente. Sempre é!
O serventuário, cujo nome desconheço, para a poucos passos de mim e diz: Você não está lembrada de mim? Estudamos juntos, dois semestres. Começamos a faculdade juntos, turno da tarde, e depois cursamos um semestre no turno da noite, novamente juntos.
Sorrio mais desconcertada ainda! Não tenho a menor lembrança nem dele e nem de todas as demais pessoas que ultimamente, de forma recorrente, me param na rua e dizem me conhecer.
É mais um dos paradoxos da minha vida. Mais uma das contradições porque se não houvessem miríades de contradições não seria eu...
Sorrio e brinco para amenizar o desconcerto de ambos – parece-me que ele tinha certeza de eu o reconhecer: Espero que a lembrança não seja ruim, já que minha memória é horrível e fica pior a cada dia!
Meu interlocutor abre um sorriso iluminado e me responde: Jamais! Se lembrasse de você de forma negativa teria passado reto. Coisas ruins devem ser ignoradas! O elogio atravessado me pega de surpresa.
Ele se vai. Volto aos assuntos de trabalho que findos me deixam livre para pensar nesse e em outros inusitados encontros que à miúde tem acontecido.
Ao que parece passei minha vida sendo mais ou menos marcante, de alguma forma, para as pessoas que me circundavam, embora elas não tenham marcado presença em mim. Porque, me pergunto, se eu era tão interessante ao ponto de vinte anos depois lembrarem-se de mim, não me chamaram para um lanche, para uma conversa, um café? Porque não trocamos telefones, não formamos grupos de estudos, nunca me convidaram para nada, nem o mais comezinho evento social da turma? ...
Atravessei minha vida sem me importar com dinheiro, vida social, influencia ou sucesso. Preocupei-me apenas em ser eu, em ser leal aos meus princípios, a cuidar da minha casa, a viver corretamente sem jamais me meter em fofocas e tanto quanto possível não as permitir a meu respeito.
Transcorrido bem mais que 50% dessa estrada observo que de alguma forma impactei muitas pessoas menos a única que me interessava impactar.
Minha inabilidade social é gritante. Não tenho muitos amigos e não sinto falta de tê-los. Os poucos que tenho, cuido-os. São preciosos e leais. Respeitam minha forma reservada e minha necessidade de espaço e silencio, mas reconhecem quando preciso de colo e chegam.
Os parceiros foram acidentes, exceto um e exatamente esse nunca consegui alcançar.
Um fruto doce de sabor encantado, mas com uma casca  impenetrável. Nunca consegui arrancar-lhe uma única lasca. Bebi do que gotejou, do que sobrou,  debalde todo e qualquer esforço que tenha feito, nunca consegui sequer arranhar, que dizer marcar sua casca protetora...
Contraditoriamente foi o único que sempre me interessou marcar. Despretensiosa que sou, não sonhei com marcas grandes. Sem trombetas ou cavalos brancos. Queria apenas ter sido como uma cerveja gelada no final de uma tarde quente, com amigos reunidos em volta da mesa. Como um jogo do seu time predileto, como uma prática desportiva da qual muda-se a modalidade conforme o corpo pede, mas nunca se abandona.
Não queria muito, só queria ter me tornado algo mais. Uma referência, um sorriso, um habito querido, um desejo permanente, mas a minha inabilidade social é tão grave que nunca consegui conquistar – nem mesmo convivendo amiúde – a única pessoa que realmente me interessou!

Palmas pra mim! Eu poderia ganhar na loto dos mais inábeis, se ela existisse, mas aí, é claro, só para contrariar, haveria alguém ainda mais inábil que eu e, certamente, eu perderia novamente.

Paralelos



 Saio da Justiça Federal em direção a Sobradinho.
Na rua, uma tarde majestosa e fresca me espera. O sol emite uma luz dourada que se insere pela folhagem das arvores pouco densas do cerrado e pousa como um beijo sobre o gramado verde. Tudo parece um grande sorriso de Deus!
Do Torto vislumbro o engarrafamento que vou enfrentar. Estende-se, visivelmente, até o Taquari. Lembro de suas palavras: Estrada de Sobradinho só até 16:30...
Quantas vezes e em quantos diferentes horários já passamos por essa estrada ao longo dos anos que nos acompanharam? Muitas e muitas e durante muito tempo associei esse recorte topográfico a momentos de muita alegria e felicidade. Era-me quase impossível passar por aqui sem sorrir, sem lembrar daquele caminho entrelaçado de arvores de onde se avista Brasília como se as arvores se abraçassem para formar um túnel.

Já tem muito tempo que não fazemos esse percurso juntos e hoje não mais o associo a alegria prazerosa das pessoas felizes, mas às nostálgicas lembranças dos antigos quando lembram tempos que se foram. De repente me sinto muito velha!
Tudo que tenho nas mãos são lembranças! Dizem que isso é a velhice: Quando os sonhos se substituem gradativamente pelas lembranças e tendemos a nos refugiar no passado porque nada mais se vê à frente... Será?
Tenho sorrir. O engarrafamento é longo e terei bastante tempo para lembranças, mas também será necessária muita atenção. Chorar não convém. Embaça os olhos, diminui os reflexos, deixa o rosto inchado e estou em horário de trabalho...E afinal, se não for capaz de sorrir ao lembrar o que passou, para que serviu ter sido feliz? Não escutei de você mesmo que tudo na vida tem começo, meio e fim? Sorrio e penso: Mas não era esse o fim que eu queria...
                  Como todos os planos que fiz na minha vida, também isso não saiu da forma como almejei. Queria assim, uma tarde dourada, uma noite fresca, uma lua linda e um mar batendo na areia da praia. Tenho a noite escura, sem estrelas, no deserto do saara...
Enquanto manejo as pistas procurando os espaços que os motoristas menos hábeis deixam vagos, penso em como toda a minha vida foi assim: Sempre procurando espaços, sem nunca conseguir encontrar um que me coubesse, acolhesse, acomodasse.
Enfim, quando já havia, exatamente como acontece agora, na altura da policia rodoviária, me acomodado a um pequeno e chato espaço na fila, abriu-se uma vaga enorme, com vista para o nascente e renasci!
Lá estava eu bem crente que seguiria minha viagem assim, até o fim. Respirei feliz e agradeci ao destino – chamemos assim para numa respeitosa metáfora – por um lugar tão privilegiado. E lá pelo meio da estrada um caminhão me fechou e jogou para o acostamento. Nem consegui ver a placa ou entender o que aconteceu, mas, certamente a vaga era muito boa para ser minha! Também agora uma caminhonete enorme pressiona meu pequeno Pálio a sair da frente e lá vou eu, deixando novamente o lugar para outro!
Que amarga que é a ressaca do doce!
Atravessado o Colorado, a estrada flui livre. Aqui em cima, há um céu bonito e pesado de nuvens espessas. Será chuva ou frio? Não sei, mas penso em frio. Não me parecem as fofas nuvens cheias d’água. Novamente volto meu pensamento para a sua lembrança – agora você é quase apenas uma recordação, como se tivesse vivido há muito tempo – gostaria tanto que estivéssemos vendo toda essa beleza juntos! Talvez soubesse me falar algo sobre as nuvens e possivelmente teria um ou outro nome feio para elas. Existem tantos talvez, tantas coisas que gostaria de ter feito com você e todas elas ficaram no mundo das ideias, embora tivesse sido bem simples realiza-las!
Entro em Sobradinho e vou olhando o sol que se derrama sobre o gramado. Há um laivo rosa avermelhado no céu: fará frio a noite!
Quando eu voltar  estará tudo escuro. É a vida que se repete no cotidiano.