terça-feira, março 27, 2018


Elegia II


“o mais terrível dos males nada é para nós, pois, enquanto existimos, a morte não é, e, quando ela está lá, já não existimos nós. A morte não teria, por conseguinte, nenhuma relação nem com os vivos nem com os mortos, uma vez que ela nada é para os primeiros e os últimos já não existem”Epicuro


“(...)O que se pergunta é se, ao ouvir-se o ritmo biológico do próprio corpo, e ao experienciar-se — ainda que indiretamente — a condição de mortal antecipada na morte do outro, não emergirá um intuitiva ameaça que põe radicalmente em causa a possibilidade da indiferença? Ora, apreender o sentido do inaceitável definhamento é um dos requisitos necessários para se tentar apreender o tempo; ou melhor, o homem como tensão entre um futuro que ainda não é e um passado que já não existe.” (SCHELLER/QUENTAL, Antero)

Munida da reflexão acima, após 11 meses, cerca de 351 dias, eis-me de volta de uma incrivel e exauriente perigrinação pelo maior deserto jamais atravessado por mim.
No mesmo ponto de partida, deixo o féretro do homem que amo – orna-o os  meus mais belos sonhos e as mais perfumadas esperaças – e saio livre de qualquer bagagem emocional. Sem ontem e nem amanhã, livre de todas as lembranças e expectativas, resurjo das minhas proprias cinzas.
Os ouvidos que festejavam o som de sua voz, acostumaram-se ao silencio da solidão. O deserto é silencioso como a morte. No infinito do vazio entendemos o nada da existencia. Não somos, ninguém é. Estamos e estar é uma condição passageira.
A pele que vicejava ao suave toque de suas mãos, encrestou-se pelo calor do abandono e os olhos que antes brilhavam à luz do seu sorriso lavaram-se sucessivamente em lágrimas sorvidas pelo infernal calor da indiferença. Como uma lâmina bem temperada, primeiro turvaram-se, para então, dia-a-dia clarearem até despontar brilhantes ao primeiro sol de hoje.
Engana-se quem supõe – e eu mesma o fiz – que foi a carpideira quem deu cabo a tudo. Ela apenas levou teu corpo inerte já de muito morto quando se entregou ao seu choro ritimado, anúncio de uma morte já concretizada.
No inicio deste ciclo, jogara-me aos pés de um outro morto – este vivo, dizem por aí as noticias que circulam talvez para nos dar uma esperança de amanhã – e reclamei uma providencia definitiva a qual me chegou a conta-gotas enquanto meus pés ensangues e desnudos percorreram as areias tórridas do deserto.
A fome e a sede me desorientaram causando ilusões e delírios. Vi-te chegar ressurreto e sorridente e cri que tudo não passara de um pesadelo macabro, mas ao cair da noite, o frio refrescou-me a mente e abismada entendi que nada havia alí.
Por sucessivas vezes os delirios me atacaram com uma fera faminta. A febre voraz, atiçada pela esperança maquiavélica que dizia que tudo era ilusão e a verdade era a realidade que já não existia, mingou minha resistencia dia-a-dia. Na exaustão adormeci um dia, melhor, desmaiei inconsciente.
Deste dia lembro-me de duas coisas: antes de fechar os olhos clamei ao universo por clemencia. Já não sabia orar, não havia mais água para chorar e nem forças para me ajoelhar. Serenamente aceitei morrer. Fechei os olhos calmamente pela primeira vez naquele deserto sombrio.
A mão misericordiosa de Morfeu acariciou meus cabelos, fechou-me os olhos e levou minha alma a banhar-se em seus rios de águas profundas. Do meio do nada, Psiquê trouxe sua imagem à minha presença – esta a segunda lembrança – e conversamos docemente. Segue-se.
(Abraçados)
(Eu) – Saudades. Quanto tempo não lhe vejo!
        - Sim. Muito tempo. Também senti saudades, mas não posso voltar. Não tenho coragem.
-  Coragem? Como assim? O que lhe impede de voltar se estou aqui, a tua espera?
- Foste leal e dedicada. Sei das tuas virtudes. Reconheço teu carinho. Ainda sofro a influencia da tua pele e do teu corpo quente. Eu, ao contrário, profanei tua confiança, conspurquei o altar do corpo que me ofereceste confiante, violei a sacralidade da tua casa introduzindo nela o desrespeito. Envergonho-me muito e na minha vergonha – de mim mesmo, esclareça-se – magoei-te tratando-te como vilania como uma forma de me autopunir provocando tua ira.
- Não me irei todavia. Amo-te demais para tanto.
- Pois tanto pior para mim Teu perdão, tua compreensão desarrazoada, teu sentir desapegado e solicito causaram-me ainda mais espécie.
- Mas...Creio que tudo seja já passado, pois não? Aqui estamos e teus braços me abraçam como dantes!
- Não. Decerto que não. Voltei – e esta é uma tentativa de remissão – para te alertar que ele se parece comigo, mas não sou eu! Tem o meu cheiro, a minha altura e responde pelo meu nome, mas não sou eu. Que te parece o gosto que deixa na sua boca? Doce como o meu?
 - Impossível! Doce algum se assemelha aos teus lábios quando me beijam... Ele tem uma boca amarga, fria. A tua sugava-me a alma!
 - E ao seu toque, como sentes a tua pele? Como se agita a sua essência feminina? Como dantes, desces por escorregas de nuvens macias?
  - Agora que me perguntas, dou-me conta de que suas mãos não brincam com meu corpo como as tuas. Mal tocam-me e se o fazem o frenesi que causam é mera excitação nervosa. Nunca alcançou-me a alma ou lançou-me na presença do grande Deus... Não há êxtase e nem paz, ao final.
   - Pois bem,vês que não sou eu todavia. É um farsante a passar-se por mim, um fantasma a exaurir ainda mais a tua pouca energia. Não lho permita. Olha que bela construção fizemos de ti. Não deixes que avilte a obra que construímos. Chega o mal que eu mesmo, com minha covardia, te fiz!
    - Ver-te-ei novamente?
   - Não. Nunca mais, mas não chores. Fomos felizes. Temias a perda do meu corpo físico, hoje vivo em ti e quando o meu corpo se for, não lhe serei tirado, pois já não existo senão nas tuas lembranças. Guarda-as. Recolhe os sinais externos de que um dia flori teus sonhos. São lembranças sagradas de tua alma. Permanecerão lá para sempre  e tão frescas quanto menos forem expostas...
     Virei-me para beijar, ainda uma vez, teus lábios amados. Minha rosa colombiana cuja aveludada doçura tanto me encantava. Deparei-me com uma poça de água salgada ali onde antes era nosso ninho.
    De volta a realidade e ao sol escaldante do deserto, tomei das minhas lágrimas como motor e levantei viagem. De alguma forma necessitava atravessar todo aquele areal e chegar á cidade mais próxima ou, ensandecida, morreria.
    A privação pode ser uma arma de melhoria. A uva que seca deve pensar que morreu, mas na verdade transformou-se em outra fruta: mais doce e nutritiva, a uva-passa resiste muito mais e pode ser consumida de muitas outras maneiras que a uva fresca jamais imaginaria.
     Assim também eu, hoje – ao chegar ao ponto de onde parti ha um ano – ao entender que já te entregaras ao choro carpido muito antes de partires para a viagem da qual nunca voltastes, deixo todas as coisas para trás.
       Como me sugeristes, retirei todos os teus sinais visíveis. Existes agora apenas em mim. Enterrei-o com tuas lembranças.
        Volto à vida sem sentimentos, sem tua presença, sem nada. De mãos vazias e olhos limpos – tanto quanto insones – vi o nascer do sol de hoje. Celebrei nossa despedida. Estou mais forte, mais doce, menos crente. Talvez Deus seja mesmo o Deus dos fortes, dos que vivem por si mesmo: sem esperar, sem reclamar, sem querer nada que não seja mais um dia para ser funcionalmente uteis!